CULTURA

Laene ComVida: 'Vai dar picanha ou moqueca?'

04/11/2022 12:00




 
“– Meu irmão, Cê vai perder! Pode Já ir reservando a moqueca no Carixabano.”
 
“– Vou é nada! Nem vem com coxão duro, viu?”
 
Essa conversa se repetia há pelo menos três meses. Os irmãos pegaram uma aposta: Bolsonaro ganhando, um pagava a moqueca; se desse Lula, o outro bancava a picanha. Pela primeira vez na vida, os irmãos dos Santos ficaram em lados opostos numa eleição para presidente. Jones, desde 1989, vota no Luiz Inácio Lula da Silva e o defende como se fosse da família: “Se não fosse ele, minha filha não estaria na universidade.”
 
“Larga esse gaiato! Vem votar mais eu no capitão que está pondo ordem no nosso país, bróder!”, retruca o caçula Jonathan.
 
Jones e Jonathan moram em Mucuri, uma cidade de pouco mais de 45 mil habitantes no sul da Bahia. Lá ainda tem muita família virada no cão, desde 2018 quando passaram a régua e o Brasil desapartou em dois. Os irmãos quase caíram nessa. Houve dias de “Jumento, se ligue!” pra lá, “Cavalo, se assunte!” pra cá, que não duravam nem um dia. São assim: não dão corda às desavenças.  Passaram quatro anos se desentendendo na política (“Seu candidato é um queixão!” E “O seu que é um abestalhado!”), todavia não perderam as estribeiras. Certamente é porque se ouvem, se olham e nem de longe desejam terminar a discussão para sempre.
 
Podem passar uma vida pensando diferente. Por mais que discordem, eles respeitam a natureza um do outro. A verdade é que veem Deus em tudo. Não são crentes de carteirinha, mas dão graças ao que os rodeia. É sagrado para eles o riacho doce, o mar, o mangue, a mata, a restinga e, sobretudo, o tempo. Por isso não têm pressa de viver. Param pra conversar com quer que seja e se for então para admirar o cenário em que vivem... “Êta! Graças a Deus!”
 
 
Mucuri é um espetáculo divino! Quando os irmãos divergem diante das falésias coloridas da Costa dourada, logo se lembram de que “o Brasil não é só verde anil e amarelo, o Brasil também é cor de rosa e carvão” e sorriem. Amam discutir política e futebol pelos 300 metros da passarela do Gigica sobre o manguezal. Quem os escuta lá debaixo jura que a peleja está feia e digna de um boletim de ocorrência. Aonde?! Os bróders são desafeitos a ranços.
 
Pro couro não comer, quando a conversa tonteia e a voz se eleva, param de comer água, fritam um peixinho... Mudam o rumo da prosa ou apenas fecham mesmo a matraca e põem-se a admirar Mucuri. “Vixe, é massa!”
 
Na semana da eleição, os irmãos evitaram conversar: “Colé?”, um cumprimentava. “Digaí?”, o outro respondia.  Jonathan não tirava a camiseta da seleção. “Ó! Não tem outra, não? A inhaca tá se sentindo de longe”, Jones de boné vermelho não se aguentava e procurava frete.
 
As provocações também eram enviadas pelo WhatsApp: memes dos candidatos e muita, muita fake news que faziam o sangue de Jones ferver – “Ópaisso! Baixo astral!” – e a barriga de Jonathan balançar na risada – “Ele é bala!”
 
Armas foi um assunto que não causou entre os irmãos. Ambos são contra a liberação para a compra e o porte. “Violência gera violência”, acredita Jonathan; “Ao invés de armas, livros”, propaga Jones. Os dois também se indignam contra a corrupção, mas discordantemente. “E o triplex, o mensalão?!” “E o orçamento secreto, os imóveis à vista?!” “Se ligue, teve o Petrolão”. “Então, tem as rachadinhas.”
 
No domingo, Jonathan saiu embecado e picado. Vestiu a farda da seleção guardada dos tempos, desde 2002, quando o Ronaldo era fenômeno. Andou depressa até a escola pra votar. Queria voltar a tempo de o irmão acordar pra deixar no banco dois cacetinhos e um caju dalícia: “Deixe de leseira, meu bom! Deixei lá na varanda uns agrados pra ti, pra Já ir se consolando”. “Tá tiraaado... É o uniforme da naftalina?” Jones demorou um tiquinho pra responder.
 
Às oito da noite em ponto, a campanhia tocou na casa de Jonathan:
 
“– A rua tá um arerê, vim na paleta. Só trouxe meia grade e uns minduins pra gente.”
 
“–  Quando acaba, chega mangando... vou é te servir uma malassada! 
 
“– Demorô! 
 
Baianês (https://acarajeedeliciasdabahia.com.br/dicionario-baianes/ e  https://viajandocomamalarosa.com.br/girias-baianas/)
 
Abestalhado: muito bobo/ Aonde?!: De jeito nenhum!/ Arerê: agito/ Bala: massa, joia, legal/ Cacetinhos: pão francês/ Carixabano: restaurante de frutos do mar em Mucuri/ Colé: E aí?, Tudo bom?/ Comer água: beber bebida alcoólica/ Dalícia: delicioso/ Demorô: Vamos agora!/ Dos tempos: há muito tempo/ Embecado: bem vestido, muito arrumado/ Êta: uau/ Farda: uniforme/ Grade: caixa de cerveja/ Malassada: mal passada/ Na paleta: a pé/ Ópaisso: olha só!/ Picado: apressado/ Procurava frete: procurava confusão/ Quando acaba: além de tudo/ Queixão: cara de pau/ Se assunte: tome vergonha/ Tiraaado: metido/ Virada no cão: muito furiosa/ Vixe: Virgem Maria! 
 






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