CULTURA

Um desabafo em Laene ComVida: 'Ela nos ultrapassa'

26/05/2023 14:00




 Efeitos da Covid ou não, as palavras têm-me perdido. Esqueço-me das corriqueiras como orégano ou das contextuais tipo mascavo. Troco os nomes próprios há tempos. Confundo, não sei por que, Frederico com Guilherme. E mesmo ouvindo Antônio, registro Adriano. Caetano, escrevo Leandro. Alguns vocábulos me parecem sumidos para sempre (o que foi retirado para não supurar, a cidadezinha que fica aqui ao lado...), só os encontro com ajuda. 
 
Penso no alemão que nos apaga as coisas, porém acho que um pouco dessa confusão vem da pressa. Ao ler dinamicamente, um não me escapa e a frase que era para negar entendo como afirmativa. Daí eu afirmo com certeza e confusões se sucedem. Tem também o cansaço: as tarefas são cumpridas automaticamente sem a devida concentração. Como se um buraco inesperado naquele trajeto rotineiro furasse o pneu do carro. Ou seja, sem atenção ao caminho, sequer me lembro de ter passado na ponte da curva.
 
Sempre curti dirigir pelas estradas pra ir viajando na vida. Assim já passei de entradas, mudei destinos, refiz roteiros, dei meias-voltas... Lavar louça também me leva o pensamento. Aonde será que a gente vai quando liga o automático e a vida transcorre sem a nossa presença?  
 
Na vida de hoje, se desligar é raro e estar presente não é mais natural. Ou seja, de tanta demanda concomitante e fragmentada, não há tempo para ausências nem espaço para inteirezas. À chamada na sala de aula, escuto dos olhos grudados nas telinhas meia centena de “presentes”. Estão no modo semiautomático, não se desligam nem tão pouco se inteiram cem por cento. Algum dia souberam da delícia de “só” olhar o mar até a vista bambear no horizonte? Será que se jogam no sofá (sem smartphone) pra somente escutar a playlist predileta? Pousar o olhar no nada, olhos raios xis atravessando sem fim o que tiver à frente... possibilidade de suspirar sem pensamentos. Ver sem enxergar. Saberão? 
 
 Não sabemos mais assistir a shows sem compartilhar instantaneamente o que vemos (vemos?) pelo celular. E tem que ser na hora! A imagem enviada vale mais do que a experiência, a emoção, o arrepio, o calor humano.
 
Estar com alguém “enfim sós” ainda existe? A “vela” dos namoros de hoje é a luz do aparelhinho, o penetra das festas é o retângulo iluminado, os agregados dos encontros são os sons das mensagens e avisos. 
 
Difícil encontrar alguém que desdenhe da tela, levante a cabeça e me olhe nos olhos. Espectadores midiatizados, temos vivido pela aflição dos dedos no visor. 
 
“Ô, ô, ô, são coisas da vida” ... diria Rita Lee. “A vida é só um detalhe”: rasga Emicida. Passamos e ela, a vida, nos ultrapassa. É isso! Os tempos são sempre outros e os modos, os jeitos, as modas vão ficando pra trás. Por outro lado, a roda dos tempos vai e volta e o presente é entornado de vozes de lá de trás.  
 
“Todas, todos e todes, por favor, desliguem seus celulares, peguem um papel e caneta e se acomodem. Podem deitar no chão, esticar as pernas noutra carteira, como queiram, re-la-xem”: Oito da manhã de sexta, sala cheia, já chego explicando a exposição fotográfica que devem produzir. Distribuo os lenços e cachecóis para vendarem a visão. Peço silêncio, uma respiração funda e sussurro: “Vocês vão ouvir a música ‘Cierra tus ojos y escucha’ 
(https://www.youtube.com/watch?v=sZAJ1lktKKk); quando ela terminar, abram os olhos e mudos anotem o que vier à cabeça.”
 
Por quatro minutos e 31 segundos, a turma de Fotografia para na conversa do sax de Gerry Mulligan com o bandenón de Astor Piazzolla. Não teve estudante que “voltasse” igual ao recinto. Todos estavam mexidos, inteiros e “avoados”, olhos de dentro arrombados de imagens. A partir daí, foram produzidas fotos sinceras reunidas em 2015 na linda exposição “A imagem sem palavra”, no saguão do Departamento de Biologia Geral da Universidade Federal de Viçosa.  
 
Perder palavras, perceber que seremos passados não deveriam ser um problema. Deleitar-se com o desenho das nuvens nunca será demodê. A gente pode (e é bom mesmo) misturar o de agora ao de antes e vice-versa.






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