CIDADE

Os poderes da música

22/04/2022 18:50




Quase na hora da noite tomar o dia, meu pai chegava a casa e bem Buda dobrava uma perna e cruzava a outra na poltrona lateral do salão (assim chamávamos a sala). Às vezes enchia o ar com a fumaça cheirosa do cachimbo, mas sempre inundava o ambiente de música. Mais do que escutar ele adorava mostrá-las. Ia nomeando os compositores: Mário Lago, Dolores Duran, Ataulfo Alves, Davi Nasser, Lupicínio Rodrigues, Noel Rosa: - Esse era um gênio! E vibrando com as vozes de Piaf, Nelson Gonçalves, Agnaldo Timóteo, Collie Francis, Gilbert Bécaud, Ney Matogrosso: - O melhor cantor do Brasil. Nessa época o protagonista do nosso salão era o som 3 em 1 cuja eletrola empilhava até cinco LPs que iam caindo um a um, me jogando pra dentro de mim, mergulhada principalmente nas letras.
 
- Mun-di-al! De madrugada, sintonizar a rádio carioca dos hits internacionais e anúncios de motel era pra mim um prazer meio proibido. De dia, deitados no sofá, no chão de taco refrescante ou empoleirados na janela, meus irmãos ouviam - e de tabela iam me apresentando - Milton Nascimento, Simone, Geraldo Vandré, Diana Pequeno, Bob Dylan, Fagner, Gonzaguinha, Pink Floyd, Quinteto Violado, Doces Bárbaros, Yes, Chico Buarque... Em tempos do Proálcool e do som automotivo que “virava automaticamente o lado da fita K7”, havia também as sessões musicais no Fiat 147 verde musgo, enquanto rodávamos (eu, meu pai e minha mãe) pela cidade. Encantava-me o castelhano dos boleros, o portunhol da Perla e o supergrave dos Cantores do Ébano: - Ô leva eu, minha saudade...
 
Ahhhhh... Música! É a linguagem universal, língua dos anjos, dizem (e acho também dos demônios). Ela arrebata e arrebenta, batendo direto na emoção e arrancando de um tudo do fundo da gente. Estou pensando precisamente no poder que algumas têm sobre mim, afetando-me com força, para o mal ou para o bem.
 
Existem músicas que me provocam ânsias de vômito, dores na lembrança. O impacto maléfico não passa pelo gosto musical, é coisa de efeitos colaterais. Aos 10, 11 ou 12 anos de idade, “Menino”, de Milton Nascimento, me torturava quando criança. “Naquela mesa” me atormenta há anos e até hoje me morde a boca.
 
Se por um lado, acontecem as sintomáticas, por outro surgem as que dão boa onda, caindo do céu como bombas de encantamento. Na década de 90 eu ouvi a linguagem celestial na música de um compositor argentino. 
 
- Como assim, garota, você nunca foi à Trindade? Os novos amigos, Carminha e João Emílio, acharam uma vaga pra mim em meio a travesseiros, barraca, mochilas, uma caixa de mamão Papaya, pencas de banana, uma garrafa de Drink Dreher, pacotinhos de biscoito Pirakê Queijinho (da embalagem vermelha) e outras guloseimas dentro do Fusca branco. A estrada estava bem movimentada. A chuva fininha fazia aquele verão virar quase inverno, mas dentro do Volks esquentávamos a vida. O estoque de fitas K7 do João e da Carminha era ecleticamente excelente. Por ele, eu conheci, entre tantas, “Insensatez”, na guitarra de Pat Metheny, as canções de Rita Lee, interpretadas por Ná Ozetti, a música “Paulista”, entoada por Vânia Bastos, “Estate”, vozeada pelo João Gilberto, “Sonho Real”, abrilhantada pela Gal Costa. - A blitz, a blitz, vai parar. Para não, para não, caraaaca! Passamos direto pela Polícia Rodoviária, viramos à direita subindo para a Vila de Trindade. 
 
O Fusquinha venceu o “Morro do Deus me Livre”, no alto os amigos pararam o carro: - Fecha os olhos, Lá. Percebi que trocavam a fita. O som instrumental do que parecia um acordeon falou comigo sem palavras. Arrebatador. Nos quase oito minutos, não perdi o fôlego, pelo contrário, me senti cheia de ar, extasiadamente viva. A vista de Trindade era estupenda, mas aquela música me tomou pra vida inteira: “Adiós, Nonino”, do bandoneonista Astor Piazzolla, que ele fizera despedindo-se do seu pai.
 
Se quiser ouvir: 
 
“Menino”: youtube.com/watch?v=JZfO9QCNcUE
 
“Naquela mesa”: youtube.com/watch?v=O7z_22bVNUg
 
“Adiós, Nonino”: youtube.com/watch?v=VTPec8z5vdY






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