CIDADE

O Agudo virou Crase!

01/07/2022 12:00




 
Dona Pergunta e madama Exclamação (lembram-se dela?) discordam de muita coisa. Mas numa coisa elas têm concordado e falam juntas: “A Crase é o quê?”
 
Quando criança a chamavam de Agudo (esse era seu nome de batismo) Narizinho: seu nariz arrebitado para a direita era um charme. Saltitante, gostava de levantar a voz nas vogais, marcando sua importância. Amava o á, é, í, ó, ú. Alegre, levava a vida na atmosfera de sempre, sabendo a hora de agudar. Atmosferas pesadas ou fétidas não lhe importavam desde que fossem o de sempre. “Normal”, como ele costumava dizer. Mas à medida que crescia se irritava (“Como assim? Não está certo!”) com a chegada de novos ares, torcendo o nariz para o outro lado, pra tudo “muiiito esquisito” que aparecesse.
 
O tempo passava e Agudo foi se transformando em Crase de tanto entortar a narina para o que lhe fosse grave: o cabelo black power do rapaz, a minissaia da setentona, a tatuagem da menina gorda, os moços de mãos dadas, a empregada no restaurante, o menino de brinco, o batuque do terreiro...
 
“Queria fazer que nem A Feiticeira e num gesto mudar o que está errado...”, lamenta, até hoje, o entortado acento. Mas, ao contrário da Samantha do seriado dos anos 70, o jovem Agudo não tem conseguido controlar as coisas, ainda mais as pessoas. Ao invés de compreender a mutabilidade da vida, o coitado teima em virar a cara. Por mais que torça (sempre pro lado esquerdo) só consegue entortar o rosto e a visão. 
 
Do alto da sua torta mirada, ele não aceita que a vida, à sua revelia, se renove. Novidades lhe causam confusão nasal. Não consegue respirar se o ar muda, mesmo se as mudanças são trazidas por amigos, colegas, conterrâneos, padres, celebridades. Ele enjoa, enoja, enjeita. Ainda não se deu conta de que o mundo nem pestaneja: segue mudando, mostrando o moto contínuo das perspectivas, pontos de vista e diferentes possibilidades de acentuação. Não percebe que ele mesmo foi virando Crase.
 
Aos 30 anos, Agudo/Crase espera pelo ônibus todos os dias à janela da dona Pergunta, mas antes para com o amigo Trema ou conversa com os irmãos colchetes na esquina da madama Exclamação. Por isso, as duas têm reparado (e muito) nas conversas e no jeito craseático de ser.
 
“- É um absurdo, companheiro Trema, não sei mais aonde vamos parar!”
 
“- Eu tremo de medo desse mundo virar... Estão perturbando até nossa Língua nacional, pra quê isso, seu... quer dizer... dona Crase?” 
 
“- Exclamação, na hora, quase entrei na conversa pra pôr os dois na real:  Ô! O mundo já virou, revirou, ‘está o contrário e ninguém reparou’!”
 
“- Só você mesma... agora tá exclamando, Pergunta querida?”
 
“- E você perguntando.... kkkk... então... todo santo dia tem conversa do encostado com a invertida aqui na esquina... falam do mundo todo! Um que não faz nada e a outra que desvirou... não se enxergam...”
 
 
“- É... a Crasete não para de falar. Outro dia conversava com ela mesma. Quando os colchetes chegaram opinando, ela virou ‘ele’ e agudou...”
 
Tornando-se alvo de outros narizes torcidos, risadas altas, olhares cruéis, Agudo, que nasceu aberto, fechou-se grave e foi menosprezado.  Entre os praticantes da língua portuguesa, grande parte a desconsidera e simplesmente a ignora. O “à casa” fora ultrapassado por “na casa” e assim por diante.
 
Volta e meia, Crase tem percebido olhares se demorando nela. Nariz torto, mas ainda empinado, desvia o rosto. No último domingo, à meia luz no cinema da igreja, não distinguiu de quem era o facho do olhar que a iluminava. Desta vez, sem desdenhar, manteve a mira pelos próximos cinco minutos até a luz voltar à sala.
 
Além dos olhos, percebeu o sorriso convite, o rosto redondo, cabelos no ombro, nenhuma aliança nos seus-vizinhos e o caminhar pachorrento. O corpo desempenado não era velho nem novato. Parecia homem, mas também mulher. Crase  forçou seus pés no chão pra não levitar. A mistura agridoce que sentia na boca a confundia. O ar estava muito renovado, leve e (como assim?) bom de respirar. Era primavera ou verão? O ser se aproximando, um frio, um calor...
 
“- Oie, prazer, sou Panitôdes... me chamam de Tôdes”.
 
“Nome estranho, gente diferente... o que estou sentindo ousa se nomear?” Crase não piscava nem virou o nariz, manteve-se séria, ligada na surpresa que tomou sua vida. “Ah! O mundo então não é só preto e branco, certo e errado, azul e rosa...
 
 “- Exclama, ô Exclama, tem visto a Crase? A tal mudou, tá sabendo? Dizem que deixou de entortar a cara, tá olhando as pessoas de frente, e agora é só suspiro.”
 
“- Notícia boa por aqui voa.” Foi o amor, dona Pergunta. Ela agora está curtindo a vida.






UID:11418204/26/04/2024 06:07 | 0