CIDADE

Elizabeth Salomão Messias: você sabe quem é?

10/03/2022 12:00




 
Quando ela aceitou ser minha personagem de estreia, levei a lembrança lá para o nosso Guarapiranga: Bêthâââânia Maríííía! Seu grito chamando a filha nos fazia tremer de rir, assim como os palavrões que ela soltava (e ainda solta) reforçando as sílabas fortes. Foram 27 anos de conversa no portão, porta aberta e um compartilhar diário. Ao se mudar, a contragosto, teve festa de despedida na rua. Naquela sexta-feira o abraço de esmagar foi o mesmo da quinta passada quando a entrevistei. 
 
Às duas e meia, interfonei no quinto, no quarto... até acertar o terceiro que “é o seu andar, não vejo a hora de te encontrar...” Elizabeth Salomão Messias (Bebé) abriu a porta, o sorriso e os braços: eu, sorrindo também, voltei a ser a menina do Guarapiranga apertada naquele abraço: Que bom que você aceitou! 
 
Bebé Salomão, Bebé de seu Geraldo, de Nêssa, Bê e Dani, continua numa lindeza sem esforço. À vontade, de bermuda e blusa soltinha e sandálias, ela me convida a sentar. O cabelo sempre cheio contrastando com as costumeiras sobrancelhas bem finas, nem de longe tem a idade que a sua RG confirma. Nenhuma maquiagem, apenas as unhas pintadas, um relógio fino no braço esquerdo e a aliança de casada. 
 
Olha minha perna, o tamanho que o trem tava, ela me mostra a coxa direita de onde retirou um tumor há quase cinco anos. Depois de bater na mesa, o local roxeou e ficou com um calombozinho que não saía. A menina da fisioterapia falava: vai ao médico, não sei o quê, não sei o quê... e eu... Aquilo nem doía! Isso foi em fevereiro, em agosto é que fui. 
 
Precisamente logo após seu aniversário, quando chegou, mancando, à casa da filha Daniela, que rapidinho marcou o angiologista. O exame Doppler não acusou nada. Então eu fui lá fazer ultrassom e o médico ficou rodando na sala pra lá, pra cá, pra lá... e me mandou pro oncologista. O especialista recomendou a retirada urgente do caroço, revelando às filhas que Bebé teria seis meses de vida. As meninas buscaram outras opiniões na Capital. O segundo médico indicou a amputação da perna.
 
Bebé, que susto! Com um sorriso maroto me confessou: Ahhhh tomei muito susto, chorava demais, mas escondido. Bem do seu jeito, ela esconde lágrimas e engole sapos para não desagradar. Sou muito tolerante, se tiver me incomodando, eu procuro me adaptar, sabe como é que é? Foi assim quando o pai não lhe permitiu cursar Odonto. Colocar-se no lugar do outro e ajudar o próximo é o jeito de Bebé. Pergunte para quem a conhece. Eu fiz isso. Seu nome é sinônimo de amor, doação, acolhimento, bondade, aconchego, carinho, serenidade...
 
 
Calmamente, na nossa tarde de conversa, Bebé ia me contando do câncer como se ele fosse a visita desagradável que a gente aguenta porque vai logo embora. Passando a mão nos cabelos pra trás, ela ria. Risos de quem conta uma história que vai acabar bem. 
 
Após 15 dias da cirurgia, Bebé foi ao casamento da neta Gabriela. Contrariando todas as previsões, o tumor de grau 4 (segundo a biópsia) não formou metástase, e “aquela doença” não reincidiu. O médico agora falou que é pra eu voltar em setembro, se Deus quiser, ele vai me dar alta. Depois do acontecido, Bebé aumentou sua fé. Você sempre foi confiante, lembro-me da ioga e do pensamento positivo. Soltando uma risada, ela lembra: Às vezes na hora que as meninas saíam pra aula eu dizia: vocês vão acertar tudo, estudou vai acertar, nem sabia se tinha estudado. Mais risos.
 
Foram 35 sessões de radioterapia, antes de Bebé retomar alegre a biodança e a fisio. Não gostou quando a pandemia a prendeu em casa. Ela adora sair, ir ao supermercado, comprar roupa nova e paparicar o bisneto Xandin: seus momentos de espairecer da rotina de acordar às seis, assistir à missa pela TV, administrar quatro ajudantes e cuidar do marido, Geraldo, e da filha Vanessa, portadora de paralisia cerebral.
 
É... essa notícia (o câncer) não foi a pior da minha vida, a pior foi depois que Vanessa nasceu, no decorrer da evolução dela... Pela primeira vez, Bebé, abaixando o tom de voz, me conta a história da primogênita. Há 54 anos, levaram-na em médicos no Rio de Janeiro e em São Paulo. Após oito anos de ultrassom, vitaminas e muita ginástica, o pediatra ‘cobrão’ do Rio de Janeiro soltou a bomba: faz isso com a menina não, ela não vai ter jeito, aí parei. Quando chegou à nossa rua, Bebé lidava com Vanessa sem drama. Apresentava-nos a ela e nos tranquilizava: Ela nunca andou nem falou, então ela é feliz assim. 
 
Cinco da tarde. Hora do café. Seu Geraldo chega pedindo biscoito e fruta. Ela o olha com doçura, mas sua voz sai firme: Só isso, viu. Vira-se pra mim sorrindo sem jeito: Se ele fica aqui, come o tempo todo. Esses dois têm história. Ele me perseguia demais, precisava ver. Bebé solta uma gargalhada.
 
18 horas: a conversa sem fim precisa parar. Facilmente viraria um livro. Entro no elevador me sentindo leve, abençoada e protegida, entendendo por que duas pessoas me disseram que pensam em Bebé como uma santa.
 






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