CIDADE

'O lado B do médico Marcelo'

02/06/2022 14:00




 
Às 9h57 aviso que estou no portão. Meu personagem é fã da pontualidade britânica. Acredite se quiser, mas ele, médico, detesta deixar (e não deixa!) seus pacientes esperando. Marcamos para as 10h no Dia da Prevenção da Hipertensão Arterial. É o que ele tem feito todos os dias: pratica Muaythai e corre 6 a 7 quilômetros.
 
Margreth, a esposa, parceira e companheira, abre o portão junto com Joe, Jully e Lunna. Entramos e nos acomodamos, nós cinco, no sofá marrom. Antes, pulo o tapete azul hortênsia, “muito bonito para pisar”. Marcelo chega com seu jeito sério, meio sorrindo. Sem o uniforme branco, mas com a camiseta azul turquesa do Vasco da Gama. 
 
Desde o início desta coluna, Marcelo Pimenta está na minha lista de perfis. Queria mostrar o lado B do compenetrado médico, contar um pouco da sua parceria profissional-amorosa, revelar o lado cotidiano por trás da forte personalidade. “Eu nunca me achei tão sério assim, mas tenho fama um pouco de bravinho (risos), eu era mais, sempre gostei das coisas certas, horário, compromisso...” 
 
A retidão veio da mãe, Iara: “A mamãe era professora, tinha um gênio bem forte.” Marcelo embarga a voz: “Papai era um bom vivant assim, sabe?...” Gotas rolam dos olhos ao sorriso de lado: “Ele se chamava Galileu e ela, Iara.” Mais risada e lágrimas. Lembrar-se dos pais traz saudade: “... Dos dois...” Silêncio de 11 segundos. Se eu fosse imaginar o doutor Marcelo se emocionando, seria desse jeito: silencioso. 
 
Naquele sábado, Marcelo se comoveu algumas vezes. Segundo Margreth, “ele ocasionalmente lembra-se de alguma coisa e chora”. Marcelo confessa rindo: “Sou chorão.”
 
O lado emotivo aparece também nas consultas. Fica visivelmente emocionado ao dar notícias ruins a pacientes. Lembra-se de muitos pelo nome: a dona Carmem, que lhe deu um troféu, dona Cecília do Pacheco, a primeira mastectomia solo, a menina Débora, do Instituto do Câncer (Inca). Encara naturalmente a morte: “Morrer vai morrer, você tem que saber viver.” Aqui ele puxou ao pai. “Marcelo sabe viver, se divertir”, me relata Margreth.
 
Apesar de se considerar um pouco tímido, Marcelo faz questão de preservar o contato social. Visita parentes na terra natal de São Sebastião do Paraíso. Vai aos encontros anuais da turma de formatura.
 
 
Nas três horas e seis minutos de conversa, Marcelo e Margreth me contaram casos divertidíssimos. A chegada à cidade de Itamaraju (Bahia) em meio à derrota do Vasco, raiva, bandeira flamenguista, chuva e pneu estourado; o esquecimento do pente gigante da fantasia de Zé Bunitin para o desfile na Sapucaí; a tempestade no cruzeiro marítimo; a meia volta quando toparam com um temporal na estrada. “Dá ré, dá ré... a gente estava indo e a chuva voltando.” 
 
Enquanto ele falava, ela complementava e vice-versa. Sintonizados há 24 anos, Margreth e Marcelo são companheiros. No trabalho, no desfile de Carnaval, no estádio de futebol, nos shows de rock anos 80, nas viagens, no boxe tailandês, na vida, na pandemia: “Ô Margreth, a gente combina mesmo, o tempo todo junto (risos).” Ele explica que ao brigar voltam em cinco minutos. No início, encantaram-se pelo comprometimento profissional um do outro, coisa de hospital pra lá, recomendação de paciente pra cá... Afinidades, amor pelos bichos...
 
“Marcelo, deu 11 horas!” Margreth traz as tulipas, rindo sobre a fixação do horário para abrir a cerveja. Ele esclarece que, se beber cedo, o dia não rende. Sigo os dois ao quintal. À direita os enfeites da área da churrasqueira de inox, o frigobar preto do Vasco. Antes dos quatro degraus largos que levam ao canil, o Cristo Redentor (vascaíno, claro!) protege a chácara. Sou apresentada aos outros filhos peludos: “Bicho é muito bom”, declara Marcelo. “Todo mundo que vem aqui sabe como a gente é, se não gosta não vem”, confirma Margreth, seguida pelo “é isso mesmo” do marido. São 11 cachorros e quatro gatos. A rápida conta quem faz é Marcelo, cuja memória é impressionante. Sabe datas de fatos gerais e acontecimentos familiares, lembra-se de todas as fantasias e anos que desfilaram no Carnaval. Tem memória fotográfica.
 
Antes de desejar a medicina, Marcelo queria ser astrônomo. Admira Einstein, mas não relativiza o não cumprimento do combinado, fica bravo. Fora isso, curte a vida. Gosta de praia, tomar uma cervejinha, praticar uma atividade física, ouvir música, estudar, acordar cedo, cuidar dos passarinhos e bichos no domingo. Quando quer uma coisa, não tem pressa: “Quanto mais você está com pressa, mais se atrasa.” Fala feito Buda, o apelido de infância.
 
Pego a estrada de volta pra casa querendo escrever um livro da família Pimenta. Contar da tia Gisele, do avô Galileu, do amigo Mariano, de Petrópolis e Paraíso, do gibi, da cerveja das 7h, da viagem pra Belém, do goleiro de handebol, do conterrâneo de Ponte Nova, dos hospitais Gavazza e das Dores, da cascavel, da rua João Pimenta... “Cê tá me entendendo?”, como diria nosso personagem. É muito história pra pouco espaço.






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