CIDADE

Laene ComVida: O anjo Guilherme

17/05/2024 14:00




 Em tempos de adoecimento, o que mais me traz saúde são os acontecimentos meio mágicos, ou como diz a poeta portuguesa Matilde Campilho: “O que me aparece e me espanta.”  Pode ser uma folha de coqueiro balançando totalmente diferente das outras no mesmo pé, uma luz que amarela a tarde, as covinhas no canto da boca de uma mulher velha que acho lindo. Algo na ordem da vida que eu vejo e me deslumbro.

Uma vez estava num catamarã voltando de Abrolhos e a tridimensionalidade das nuvens me arrebatou. As nuvens cheias no céu daquela tarde me pareceram mais perto e volumosas. Um troço lindo!

Ainda mais raro do que os momentos mágicos são os feitos humanos, tipo uma mão que sai pela janela do carro à minha frente parando o trânsito para o cão cruzar a avenida.

Hoje estou animada. Vou aparar a juba que já virara moita. O céu azulejado me chama pra sair de moto, um vento de frente sempre é bom. Até a cabeleireira são cerca de 10 quilômetros. Com tempo de sobra não costuro o trânsito, contudo não consigo evitar os trancos.

 Sem lembrar o número do salão, chego à rua, metendo a mão no bolso pra conferir no celular. Ca-dê meu ce-lu-lar? Não está na moto, não está na jaqueta. Caiu no caminho. Retorno ao quarteirão, devagar, encarando o asfalto...
“Perdi! Corto o cabelo ou volto pra casa?” Decido tocar a vida, encontro o local onde entro aluada. Em choque.

“- Usa o meu.” Uma cliente me estende o aparelho. Ainda avoada, ligo pra Isabella que me traz pra real:

“- Já ligou pra ele?”

Meu estranhamento aumenta quando ligo para o meu número e atende um homem.

“- Fica tranquila. Vou levar o seu celular aí pra você.”

Confesso que hesito em acreditar. Só sossego quando avisto a capinha laranja na mão de um anjo barbudo sorridente.

Guilherme Silva Martins é um homem de bem. Quero agradecer-lhe com um presente, mas ele não me diz do que gosta e num sorrisão repete que não precisa. Marcamos então uma conversa para depois.

Numa calma contente, Guilherme me aguarda dar um jeito no som do notebook. Camiseta regata, cordão grosso de prata e uma pulseira FIR (aquelas para equilíbrio) vermelha. A barba cerrada e bem desenhada, cabelo curto, óculos finos prateados.  No seu colo, Geovana, a caçula agarradinha:

 “- Graças a Deus”, ele adora o “grude”. 

Do tipo que troca fralda de madrugada, o paizão cuidou da filhota nascida na pandemia e da mulher de resguardo:

“- Até fui eu mesmo que furei a orelha dela. Esterilizei com álcool e meti força num brinquinho daquele de furar mesmo. Ela nem chorou.”

De olho na pequena e atencioso à nossa conversa, Guilherme vai me contando da sua vida, com respostas rápidas e sorrisos aos montes. Contente com a construção da casa própria (“assim que ficar pronta nós vamos procurar um jeito de casar”), ele já planeja as próximas realizações: casar com Daiane, sua companheira há 19 anos (“os meninos nem conseguem mais carregar as alianças, já estão velhos, rsrsrs”), e voltar a estudar.

Depois de parar os estudos aos 16 anos quando foi pai pela primeira vez (“aí comecei a trabalhar, trabalhar, trabalhar”) e após sete anos concluir o Ensino Médio, frequentar o cursinho preparatório, fazer o Enem e ficar na lista de espera do Curso de Matemática da Universidade Federal de Viçosa (UFV), vem a pandemia e cancela tudo. Mas Guilherme pretende realizar o sonho de se formar em Engenharia Mecânica (“como mexo muito com carro, eu gosto de mecanismos”).

Lanterneiro e pintor na Viação União, depois do horário, Guilherme faz uns bicos numa oficina. Nos fins de semana, ele gosta de passear com os filhos e ficar em casa, tomando sua gelada (“a única maneira de distrair a mente”), às vezes acompanhado da esposa, Daiane (“com ela, qualquer coisa, cerveja ou vinho, fica bão”).

A fim de descobrir algo que ele goste de ganhar, pergunto de outros jeitos.

  “- O que pediria para Jesus, se ele aparecesse à sua porta?”

“- Saúde e prosperidade para minha família.”

“- Qual frase colocaria numa plaquinha na sua casa nova?”

“- Deus é bom o tempo todo.”

“- Você ao me devolver o celular, naquele dia, foi um anjo dele.”







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